quarta-feira, 6 de maio de 2009

Possíveis veredas para educação ambiental (Maria Rita Avanzi)

Possíveis veredas para educação ambiental
Maria Rita Avanzi
[1]

“Digo: o real não está na saída nem na chegada:
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”

João Guimarães Rosa

Para iniciar esta breve reflexão sobre possíveis veredas para educação ambiental, gostaria de dialogar com algumas palavras trazidas por Rosiska Darcy de Oliveira em seu livro, publicado recentemente, “A Re-engenharia do tempo”. A autora nos faz um convite à coragem de enfrentarmos a “ideologia do sempre foi assim”, argumentando que “a astúcia de uma ideologia é a de se disfarçar em senso comum, produzindo um imaginário coletivo por todos endossados”, ou seja, sua força está em permanecer invisível como ideologia travestida de verdade objetiva.
A temática do livro de Rosiska Oliveira não está explicitamente voltada para a relação que os humanos estabelecem com seu ambiente. No entanto, à medida que incita reflexões sobre a organização dos humanos nas sociedades contemporâneas, sobre a maneira como são construídas as relações de trabalho entre gêneros, principalmente, com a distribuição e utilização do tempo, diz também respeito a um aspecto caro à temática ambiental: a re-significação dos valores sociais e de relação com o ambiente.
A “ideologia do foi sempre assim” manifesta-se nos mais diversos espaços-tempos: na noção de que a natureza é um outro a ser dominado, assim como devem ser domesticados os que destoam do “normal” aos padrões de nossa sociedade. Manifesta-se também na substituição da noção de ambiente como bem de uso comum por uma idéia em que aqueles que têm poder se reservam também direitos de subjugar outros considerados inferiores, seja pelo uso indevido do ambiente ou do trabalho.

É neste sentido que o questionamento da “ideologia do foi sempre assim” pode se aplicar à reflexão sobre potencialidades da educação ambiental em contribuir com a formação de sujeitos que se apropriem da idéia de que há algo diferente a se construir na história de cada indivíduo e na história política, do coletivo que se organiza e estabelece regras de convivência com o ambiente.
Pode contribuir com estas reflexões a compreensão de ambiente como organização humana no espaço total, trazida por Milton Santos, o que significa “compreender seu território enquanto suporte da produção em todas as instâncias” (Santos, 2001). O autor entende território como extensão apropriada e utilizada por grupos sociais, portanto, a partir de uma abordagem histórica. Sob este ponto de vista, quando vamos definir qualquer pedaço de território devemos considerar a interdependência e inseparabilidade entre materialidade - que inclui natureza - e o seu uso - que inclui ação humana e, portanto, trabalho e política.
As configurações territoriais são, sob essa perspectiva, o conjunto composto por sistemas naturais, herdados por determinada sociedade, e por sistemas de engenharia, sendo que esses agregam os aspectos técnicos e culturais, historicamente estabelecidos. Assim, diferentes grupos sociais, em momentos históricos diferentes, apresentam usos diferenciados do ambiente. As configurações territoriais, bem como o significado que lhes é atribuído, provêm das ações realizadas sobre o território. Está impressa no mundo natural uma intervenção cultural que o transforma. Portanto, ambiente é tratado como uma construção: cada grupo decodifica o ambiente a partir de recortes apreendidos e criados de acordo com sua situação histórico-cultural.
Esta pode ser uma vereda a trilharmos para questionar a “ideologia do foi sempre assim”. Ao observarmos o que se configura no ambiente a nossa volta, podemos entender que as regras de utilização deste espaço foram construídas pelas relações históricas e culturais dos grupos sociais e podem, portanto, ser modificadas.

“Só que às vezes uma utopia foge da gaiola”
(Oliveira, 2006)

É com esta frase que Rosiska Oliveira nos apresenta as possibilidades de transformação daquilo que se mostra como “naturalizado” no fazer-sobre-o-mundo contemporâneo. Citando Ernest Bloch, a autora conceitua utopia como “o ponto de vista de onde julgamos o que fazemos à luz do que deveríamos fazer”. É como manter viva no horizonte a visualização de onde queremos chegar e por aí guiar e avaliar nossas ações cotidianas, as veredas por nós percorridas. No que diz respeito à temática ambiental, podemos observar num extremo a naturalização da idéia de que a necessidade de desenvolvimento justifica a alteração indiscriminada do ambiente, porém em outro pólo torna-se senso comum a proposição de práticas normativas de educação ambiental que procuram impor um comportamento tido como ecologicamente correto. Frente a estas naturalizações, o que miramos no horizonte como guia para nossos trabalhos educativos? Quais seriam as possíveis veredas para nosso trabalho cotidiano?
Se aceitamos a idéia de que há uma relação intrínseca entre ambiente, as técnicas de uso do mesmo pelos grupos sociais e os significados atribuídos ao ambiente e às técnicas, desenvolver um processo educativo que visa a compreensão do ambiente não seria simplesmente transmitir uma leitura objetivada, que pretende descrever suas leis, mecanismos e funcionamento. Nos projetos educativos que chegam como imposição de um conceito de ambiental, permanece um estranhamento que parece não solicitar os grupos envolvidos à nova compreensão, pois não se abrem a dialogar com os sentidos que estes já projetavam sobre seu espaço de vivência e de trabalho. Eda Tassara (1992) argumenta que a crise ambiental é uma disputa em torno do poder de locução, assim o discurso ambientalista seria produzido em culturas de consumo que estabelecem referências que são difundidas mundialmente, ofuscando um processo de dominação. Considerar essas reflexões da autora implica reconhecer que aqueles que têm o poder de produzir discursos e narrativas irão estabelecer o que tem ou não estatuto de verdade. Ao trabalharmos com a temática ambiental nos diversos espaços educativos, um caminho seria buscar o que se esconde por trás dos discursos veiculados a respeito dos mais variados temas geradores.
Nesse trabalho educativo, os sentidos atribuídos aos temas relacionados ao ambiental poderiam ser pontos de partida e também ponto de chegada de um processo de busca por ampliar a compreensão, diagnosticar e transformar as relações com o meio. Uma vereda para um trabalho de educação ambiental seria facilitar a abertura de canais de interlocução, buscar compreender como são produzidas as narrativas e explicitar as divergências que se escondem por trás de consensos construídos – por exemplo desenvolvimento sustentável, consumo, biodiversidade, produção limpa, entre outros temas.
Essas proposições se inserem numa discussão a respeito da busca por uma ciência compreendida como prática social do conhecimento, envolvida com a construção de um saber em que indivíduos e coletividades se reconheçam e do qual possam se apropriar como alternativas de realização pessoal ou coletiva (Santos, 1999, 2001). Para Boaventura de Sousa Santos uma das condições para tal seria o reconhecimento que existem muitas outras formas válidas de saber além do saber científico hegemônico. Não reconhecer essas formas de conhecimento implica deslegitimar as práticas sociais a elas atreladas e, portanto, promover a exclusão social de classes e grupos que as constroem: “Um novo senso comum estará em gestação quando essas classes e grupos se sentirem competentes para dialogar com o saber hegemônico e, vice-versa” (Santos, 1999: 228).
A discussão a respeito do reconhecimento da legitimidade de outras formas de significar o ambiente encontra-se com a compreensão que Henri Acselrad (2004) lança sobre a ação coletiva em torno da temática ambiental. A distribuição dos efeitos ambientais está, evidentemente, relacionada à diferença de poder sobre o ambiente entre os distintos grupos sociais. No entanto, há também um aspecto simbólico que opera nesta ação, o da representação que os agentes fazem do mundo social. Portanto, concomitante a uma luta que denota relações de poder na apropriação do ambiente, temos um embate por reconhecer a legitimidade das formas de significação deste ambiente e sua incorporação no estabelecimento das normas que regulam seu uso.
Trilhar a educação ambiental por veredas que proponham ampliar a compreensão sobre essas múltiplas significações pode contribuir para contextualizar os elementos que compõem as disputas em torno da questão ambiental. Reconhecer a incompletude
[2], que seria própria de toda forma de conhecimento, traz o diálogo como potencialidade de busca pela abertura de canais de interlocução para que diversas práticas sociais se manifestem e, quem sabe, contribuam para criar alternativas à “ideologia do foi sempre assim”.


Bibliografia:

ACSELRAD, Henri. “Justiça ambiental – ação coletiva e estratégias argumentativas”. In: ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene & PÁDUA, José Augusto. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004.
OLIVEIRA, Rosiska Darcy. A re-engenharia do tempo. São Paulo, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo, Cortez, 1999.
SANTOS, Boaventura S. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol 1: Para um novo sendo comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática. São Paulo, Ed. Cortez, 2001.
SANTOS, Milton & SILVEIRA, María Laura. Brasil: territorialidde e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro, Record, 2001.
TASSARA, Eda T. de Oliveira. “A propagação do discurso ambientalista e a produção estratégica da dominação.” Espaço e debates, n.35, 1992.

[1] Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Atualmente é consultora do Departamento de Educação Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, responsável pelo Programa de Formação Continuada do MMA. Email: maria-rita.avanzi@mma.gov.br, riomaria@gmail.com

[2] Esta proposição de Santos pode ser posta em diálogo com as idéias de Paulo Freire a respeito da incompletude e inacabamento do ser humano. A incompletude denota o caráter relacional de nossa existência, somos incompletos porque “sem o outro não existimos”; e o inacabamento, nossa inserção num processo histórico que está em construção, põe-nos em “permanente processo social de busca” (Freire, 1998: 61).

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